Nove anos se passaram desde que a Lei Maria da Penha entrou em vigor. Algumas coisas mudaram durante esse período. O assassinato de mulheres, por exemplo, tornou-se crime hediondo. A presidente Dilma Rousseff (PT) sancionou, no dia 9 de março deste ano, a lei 13.104/15, que considera homicídio qualificado o assassinato de mulheres em razão do gênero (feminicídio). A norma altera o Código Penal e também inclui o feminicídio no rol de crimes hediondos, previsto na lei 8.072/90. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a Lei Maria da Penha impactou de forma positiva na redução de assassinatos de mulheres por motivos de violência doméstica. Mas, para avançar nas políticas de combate aos crimes de gênero é preciso fortalecer a infraestrutura de acolhimento às vítimas. O trabalho deve envolver toda a sociedade. É o que defendem Maria da Penha, que inspirou a criação da lei de combate à violência contra as mulheres no Brasil, e a antropóloga francesa Véronique Durand, autora de inúmeras pesquisas sobre as várias formas da violência contra as mulheres em diversos países.
Avanços e desafios da Lei Maria da Penha
Fotos: Nando Chiapetta/DP/D.A.Press
Maria da Penha
Qual o maior avanço trazido pela Lei Maria da Penha nesses noves anos?
O avanço foi que os gestores públicos conseguiram, principalmente nas capitais, fazer com que a lei funcione de verdade através da criação de políticas públicas. Hoje temos em todas as capitais brasileiras aptas a atender a mulher vítima de violência doméstica e aplicar as leis de proteção da mulher e punição do agressor.
A sociedade avançou nesses nove anos com relação ao despertar da violência, que às vezes é invisível?
Sim. Soubemos por meio de pesquisas que 98% da população brasileira sabe que existe a Lei Maria da Penha. Talvez as mulheres que moram nas cidades onde a lei está implementada saibam e nas cidades onde não existe a implementação da lei é que elas ignorem como sair de uma situação de violência.
Qual o maior desafio para popularizar a lei?
Acho que é exatamente a cultura machista que interfere nos gestores, que não criam as políticas públicas necessárias para a lei funcionar.
Que políticas seriam essas? Implantar programas nas escolas para começar a fomentar o respeito aos direitos das mulheres nas crianças ajudaria?
Não só isso. É importante que se difunda o respeito à mulher desde o início da educação. Mas as políticas públicas a que me refiro são a criação da delegacia da mulher, o centro de referência da mulher, um dos equipamentos mais importantes que a lei tem, a casa-abrigo e o juizado da mulher.
As redes sociais têm dado contribuição ao combate à violência contra a mulher e outros grupos vulneráveis, por meio de ativistas que espalham informação. A novas mídias ajudam mulheres a se libertarem de situações de violência?
As redes sociais são importantes nessa luta, para esclarecer, assim como vocês da Comunicação. No momento em que a comunicação acontece não apenas no Dia Internacional da Mulher ou no aniversário da lei, mas em todas as ocasiões, por exemplo, quando uma mulher é assassinada e ganha visibilidade, é importante na divulgação dos caminhos para sair de uma situação de violência.
O que é mais importante: transformar a cabeça da mulher para que ela não se deixe cair numa situação de violência? Ou atuar na cabeça do homem, para combater a cultura do machismo? O que interfere mais?
A mulher é quem deve ser mais instruída porque pesa muito para ela tomar uma decisão. Primeiro porque ela tem medo do agressor. Segundo porque ela teme que seus filhos comecem a passar necessidade. Essa mulher deve ser esclarecida e saber que ela pode, quando não quiser voltar para casa, ser amparada por uma casa-abrigo e conversar com pisicólogos, além do serviço social, que indicarão caminhos.
Fotos: Nando Chiapetta/DP/D.A.Press
Veronique Durand
Qual o principal vetor de combate à violência contra a mulher?
Temos que trabalhar com a sociedade como um todo. Precisamos trabalhar com a mulher, para ela saber os direitos que tem, porque muitas vezes ela ignora os seus próprios direitos e em outras vezes tem problemas de autoestima, já passou por situações de violência na família. Temos também que trabalhar com o homem para limitar a reincidência. O homem é criado pelas mulheres, em geral, e constatamos um fenômeno de reprodução social que a gente só vai poder modificar e limitar trabalhando com homens, mulheres, crianças e até idosos, que devem mudar de mentalidade.
Recentemente o Recife adotou a política de gênero nas escolas. É um passo importante para formar as próximas gerações no combate ao machismo?
Sim. Tem que trabalhar com as crianças porque os meninos acham que têm mais direitos do que as meninas. Então quando na escola o professor vê um conflito, vê que tem dificuldade, vê que tem uma menina que realmente é a vítima verbal, psicológica, física de meninos ou até de outras meninas, porque a gente tem que pensar na violência como um todo, ele pode intervir. Se ele não tiver essa noção de gênero fica muito complicado. Aliás, a noção de gênero não perpassa toda a sociedade, o que deveria ser feito.
A maior adversária do combate à violência contra a mulher é a cultura do machismo ou há outros fatores?
Tem a cultura do machismo, mas tem a nossa memória coletiva. Acho que também tem a religião. As religiões monoteístas nos passaram realmente essa noção de que o homem é superior à mulher. Principalmente no Hinduísmo e no Islã, onde a mulher é por definição inferior. A gente tem um trabalho fenomenal para fazer. É uma questão de mentalidade que tem séculos e séculos e que vai levar, provavelmente, gerações e gerações para ser mudada.
Como é a questão da memória coletiva?
Nós carregamos o que aconteceu nos dez séculos passados e nos outros anteriores e de maneira inconsciente reproduzimos aquilo. Eu, por exemplo, percebo que, em certas circunstâncias, me comporto de uma forma com um menino porque é menino. Mas terei outro comportamento com uma menina, porque é menina. É preciso falar com os meninos da mesma forma que falamos com as meninas. Isso não é fácil, não é simples. O peso da história é difícil de ser carregado. A gente não vai mudar de comportamento de um dia para o outro.