*Leonardo Sakamoto
A violência de gênero não é monopólio de determinada classe social e nível de escolaridade. E não se manifesta apenas através da porrada, mas possui mecanismos mais sutis. Como mantê-las trabalhando mais e não reconhecer essa diferença. E, pior, subvertendo o discurso em favor dos homens.
Um dado interessante da Síntese de Indicadores Sociais, divulgadam nesta sexta (29), pelo IBGE: Homens trabalham fora de casa 42,1 horas/semana e as mulheres 36,1 horas/semana – em média. Mas eles se dedicam a 10 horas/semana a afazeres domésticos e elas 20,8. Na somatória, dá 52,1 horas/semana para eles e 56,9 horas/semana para elas.
O problema é que trabalho doméstico ainda não é considerado trabalho, mas sim obrigação, muitas vezes relacionado a um gênero que tem o dever de cuidar da casa. Dever este que não está no código genético da humanidade mas foi construído e imposto. E transformado em tradição e cultura, é abraçado como se mulher cuidar da casa e dos filhos fosse a coisa mais natural do mundo.
É sintomático, portanto, que apenas recentemente a Organização Internacional do Trabalho tenha conseguido aprovar uma convenção para igualar direitos para trabalhadoras domésticas em relação ao restante da sociedade. Ou que o Brasil ordenasse que fossem erguidas da xepa as trabalhadoras empregadas domésticas, garantindo a elas os mesmos direitos que o restante da população. O que levou, é claro, a lamúrios da Casa-Grande.
A questão da jornada tripla (trabalhadora, mãe e esposa) é apenas um elemento para corroborar o fato de que vivemos em uma sociedade com um pé no futuro e outro no passado. A qual todos nós pertencemos e, portanto, somos atores da perpetuação de suas bizarrices.
Discutimos muito sobre as mudanças estruturais pelas quais o país tem que passar, citando saúde, educação, transporte, segurança, mas muitos se esquecem que as mulheres que são maioria numérica e minoria em direitos efetivados.
Em cargo de chefia, elas têm que provar que são melhores do que os homens. Quando o ex-presidente da Argentina, Néstor Kirchner morreu, houve gente que perguntou se Cristina teria capacidade de tocar o governo sem os conselhos dele na cama. Fino.
Temos uma mulher na Presidência. Simbolicamente relevante, politicamente insuficiente, não serve para justificar nenhuma mudança estrutural. São poucas as governadoras, prefeitas, senadoras, deputadas, vereadoras. Mas também CEOs, executivas, gerentes, síndicas de condomínios. A Suprema Corte tem 11 assentos. Só dois deles pertencem a mulheres, infelizmente. Falta criar condições não apenas para que elas cheguem lá mas, chegando, sejam tratadas com o mesmo respeito que os homens. O que inclui a adoção de políticas corporativas específicas para a maternidade, garantindo que suas carreiras não sejam sepultadas ao saírem para terem filhos e a eles dedicarem cuidados nos primeiros meses, políticas que levem em consideração que o ser humano se reproduz.
Se homens tivessem ganhado útero no último século, certamente já teriam dado um jeito disso acontecer.
De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais: as mulheres continuam com menos acesso a cargos de direção do que os homens. Isso sem contar que, quando atingem esses postos, sua remuneração corresponde a 60% da masculina.
No jornalismo, que tem a função de levar essa mensagem adiante, a situação também é gritante. Na média, mulheres são maioria nas faculdade de comunicação e nas redações, mas não em cargos de alta chefia – muito menos entre os editorialistas, que redigem a opinião dos veículos de comunicação. As justificativas são várias, mas muitas acabam em algum machismo doido.
Em 2002, o ganho das mulheres era equivalente a 70% do rendimento dos homens. Dez anos depois, passou para 73%. Mas para quem tem 12 anos ou mais de estudo, a relação vai a 66%. Ou seja, neste caso, a desigualdade aumenta com a escolaridade.
Diante de constatações vergonhosas como essa, colocamos a culpa no processo de formação do Brasil, na herança do patriarcalismo português, nas imposições religiosas, no Jardim do Éden e por aí vai. É mais fácil atestar que somos frutos de algo, determinados pelo passado, do que tentar romper com uma inércia que mantém cidadãos de primeira classe (homens, ricos, brancos, heterossexuais) e segunda classe (mulheres, pobres, negras e índias, homossexuais etc).
É o que eu já disse aqui antes: todos nós, homens, somos sim inimigos até que sejamos devidamente educados para o contrário. E tendo em vista a formação que tivemos, é um longo caminho até alcançarmos um mínimo de decência para com o sexo oposto.
*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.