O assédio que sofrem as mulheres no transporte público está tão generalizado em todo o mundo que o mais comum é que se calem e não denunciem os assédios verbal, sexual e físico que sofrem nesse espaço. Há estudos estimando que aproximadamente 1,5 milhão de meninas, que em 2030 seriam suscetíveis a sofrerem algum tipo de violência e assédio por sua condição de gênero no transporte público, residirão nas cidades.
Se a comunidade internacional de mulheres fizer vista grossa para os olhares que salivam e ao contato humilhante dos homens, não estaremos avivando um “mercado de carne” e sucumbindo à objetivação sexual das mulheres em nível global? Por acaso a renúncia das mulheres em reconhecer o medo generalizado que lhes provocam não dá aos homens que as assediam um poder imbatível? Ao deixar de lado o assédio, as mulheres não estarão fortalecendo a cadeia repressiva do patriarcado ao não questionar nem repreender esse comportamento?
Uma boa oportunidade para enfrentar o assédio sexual e a ameaça que sofrem as mulheres no transporte público, e lutar por seu direito básico à liberdade de movimento em seu próprio entorno, será a Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III). Especialmente porque, no encontro, organizado pela ONU Habitat que acontecerá em Quito, capital do Equador,entre 17 e 20 de outubro, se discutirá uma Nova Agenda Urbana mundial.
Muitos poderão dizer que brincar ou que um “pequeno toque” são inofensivos, mas o retrocesso que implica os homens serem uma ameaça para elas no transporte público é vital. As pessoas não costumam considerar um comentário como ameaçador ou um olhar luxuriante possa representar um obstáculo para a liberdade e o desenvolvimento educacional e social das mulheres.
Segundo os últimos debates dirigidos pelo espaço digital de debates Wikigender, as questões relacionadas com a acessibilidade e a segurança podem dissuadir as mulheres de utilizar espaços públicos, de continuar sua educação, de aproveitar oportunidades econômicas e de receber atenção médica.
Se a Nova Agenda Urbana se concentrar em como fazer para o transporte público contemplar as mulheres, se estará mais perto de se conseguir o quinto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que promove a igualdade entre os gêneros e o empoderamento de todas as mulheres e meninas. E também ajudará a cumprir o ODS número 11, que se propõe conseguir que as cidades e os assentamentos humanos sejam inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
A necessidade de erradicar os sistemas de transporte que são omissos frente às questões de gênero é especialmente importante na conjuntura atual porque, pela primeira vez na história, há mais pessoas vivendo nas cidades do que nas áreas rurais. Não há melhor momento para implantar iniciativas inclusivas de gênero no transporte do que o atual. Nos países em desenvolvimento, cinco milhões de pessoas começam a viver nas cidades a cada mês.
Um informe da organização humanitária Plano Internacional,que trabalha a favor da infância e da adolescência, indica que o medo da violência que as adolescentes sentem prevalece particularmente em cidades de países em desenvolvimento como Kampala, Nova Délhi e Lima, onde foi realizada a pesquisa. As conclusões falam de gritos de terror e do incômodo que gera um sistema de transporte que não contempla as questões de gênero em prejuízo de meninas de apenas 12 anos.
Em Nova Délhi, apenas 3,3% das consultadas disseram se sentir seguras em um meio de transporte público. Já em Lima, apenas 2,2% afirmaram se sentir seguras ao caminhar em espaços públicos. Em Kampala, mais de 80% das jovens mulheres entrevistadas disseram se sentir inseguras nas idas e vindas urbanas, em geral.O estudo foi feito em diferentes partes do mundo, mas o silêncio foi o denominador comum em todas as partes. A dúvida das mulheres na hora de denunciar situações difíceis permite que se mantenha o círculo vicioso de vitimização, assédio e ameaça no transporte público.
As entrevistadas destacaram o fato de suas opiniões não terem sido consideradas na hora de realizar o planejamento urbano e compartilharam um sentimento generalizado de exclusão no que diz respeito à tomada de decisões importantes em suas respectivas cidades. E, o que é irônico, muitas jovens diminuíram a importância ou desculparam as ações dos homens agressores e que assediam.
Durante as entrevistas para o informe da Plano Internacional, palavras como “agressão” e “assédio” foram substituídas por “bobagem inocente”, em Nova Délhi, e por “contato inapropriado”, no Cairo. Isso revela que a reticência das mulheres vítimas de assédio e violência em condenar os agressores deriva de um sentimento intrínseco de vergonha que lhes foi inculcada.
E, no que pode ser considerado um processo de revitimização, o profundo temor social de ser responsável pelo assédio e de ser objeto de zombaria, de ridículo, e até sofrer castigos, funciona com eixo do silêncio que cerca o assédio contra as mulheres no transporte público. E, indo além, a recorrente negação do direito fundamental que têm as mulheres de se deslocarem nas cidades não gera nada mais do que indignação.
O incômodo e a insegurança feminina já não podem ser considerados uma “norma social” ou uma consequência associada ou vinculada ao fato de ser mulher. A apatia das testemunhas do assédio é consequência de um medo subjacente de intervir de alguma forma na situação. Se ninguém escolhe condenar a agressão, continuarão existindo os obstáculos à livre circulação das mulheres.
É fundamental compreender que esse assunto não é menor nem específico das mulheres, mas que é uma epidemia mundial avivada por um sentimento de machismo adquirido. De fato, uma pesquisa feita pelo Hollaback!, um movimento internacional contra o assédio nas ruas, e pela norte-americana Universidade Cornell, com base em 16 mil entrevistas em 22 países, concluiu que entre 80% e 90% das mulheres sofrem assédio em espaços públicos.
A evidência revela a impactante dimensão do assédio público, a ponto de 66% das mulheres alemãs consultadas dizerem que foram tocadas em público e 47% das indianas terem sido testemunhas de diferentes tipos de exposição masculina em espaços públicos.Em Nova York, estima-se que não são denunciados 96% dos casos de assédio sexual, nem 86% das agressões sexuais que ocorrem no metrô. Em Bogotá, a cidade colombiana considerada como a que tem o transporte público mais perigoso do mundo para a população feminina, seis em cada dez mulheres denunciaram ter sido vítimas de assédio físico enquanto viajavam.
Esses dados mostram que o contínuo assédio dos homens é uma ameaça generalizada e prejudicial ao futuro da igualdade de gênero. Por isso é fundamental que a Nova Agenda Urbana da Habitat III implemente iniciativas com forte ênfase em conseguir que a mobilidade de mulheres e meninas seja segura nos entornos urbanos. Ao garantir um transporte seguro e a proteção das mulheres, criar uma rede de apoio e reconhecer o significado fundamental da voz feminina nos processos de decisão nos âmbitos urbanos, estará preparando o caminho para que se desloquem livremente nas cidades.
Dessa forma, a próxima mulher ou menina que se sentir ameaçada por um olhar que a denigra ou um comentário humilhante não sofrerá as consequências da reprovação e, por outro lado, denunciará o responsável e ajudará a pôr fim à insegurança e à vitimização no transporte público.
Rose Delaney, da IPS
Fonte: Envolverde/IPS