Respondendo ao problema persistente da violência contra a mulher, o Primeiro-Ministro italiano, Enrico Letta, anunciou em agosto medidas “muito severas, muito duras” para deter a violência doméstica e o que qualificou de “femicídio”, a morte de mulheres porque são mulheres, muitas vezes nas mãos de atuais ou antigos maridos e namorados. O decreto com 12 pontos, de vigência imediata, estabelece penalidades mais severas à violência doméstica, sexual e perseguição, ampliando a proteção a algumas das mulheres mais vulneráveis, incluindo imigrantes sem permissão para residir no país. — Nós acreditamos que é necessário passar um recado muito forte em nosso país para combater a violência doméstica — afirmou Letta ao anunciar as medidas a oito de agosto. Na sequência de uma série de ataques amplamente divulgados às mulheres, o decreto é “um sinal de mudança radical sobre a questão”, garantiu. Porém, novos ataques acontecidos na esteira do anúncio de Letta animaram as críticas de defensores das vítimas segundo os quais penalidades mais rigorosas por si só não bastam para proteger as mulheres e impedir a violência doméstica. Recentemente, uma mulher do norte italiano foi morta a facadas pelo antigo parceiro que escondeu seu corpo no carro, uma siciliana foi assassinada na frente do filho pelo ex-marido que então se suicidou e um homem cujos motivos ainda são desconhecidos jogou ácido no rosto de uma mulher em Genova. Neste ano, mais de 80 mulheres foram mortas, a maioria pelos maridos, namorados ou antigos companheiros, segundo contabilidade não oficial realizada pela imprensa italiana. Muitas das vítimas acionaram a polícia para registrar episódios de perseguição ou assédio. Quase 75% das 2,2 mil mulheres assassinadas entre 2000 e 2012 – praticamente uma morte a cada dois dias – foram mortas pelos parceiros ou ex-parceiros, de acordo com estudo da Eures, organismo da União Europeia que monitora questões sociais e de emprego, em colaboração com a agência de notícias Ansa. Um estudo das Nações Unidas, de 2012, sobre a agressão contra as mulheres na Itália qualificou a violência doméstica de “forma mais disseminada de violência” no país, afetando quase 32% das mulheres com idades entre 16 e 70 anos, segundo pesquisa de 2006. Ainda de acordo com o estudo, mais de 90% das italianas estupradas ou agredidas não notificaram a política. Os defensores das mulheres e orientadores que trabalham com mulheres espancadas dizem que acolhem positivamente a atenção do governo a um problema social há muito tempo negligenciado, mas afirmam que, em sua maior parte, o decreto não acerta o alvo. Segundo os críticos, a Itália não precisa de leis mais severas, pois a legislação existente é adequada, ainda que aplicada de forma arbitrária. Para eles, o que falta é uma rede mais organizada e financiada de assistência psicológica, jurídica e financeira às mulheres que decidem romper um relacionamento violento. — Efetuar modificações no sistema penal sem abordar a questão de como proteger melhor as mulheres significa estar cego à realidade — disse Barbara Spinelli, feminista e advogada que escreveu um relatório sobre a violência doméstica na Itália para o Comitê das Nações Unidas para Eliminação da Discriminação Contra a Mulher. Relatos da ONU e de agências europeias destacam “o fracasso das instituições e autoridades italianas em fornecer proteção adequada a mulheres vítimas dos parceiros ou ex-parceiros”, disse Spinelli. “Ou você executa as reformas estruturais necessárias ou o decreto não ajudará as mulheres.” Um dos problemas estruturais é a escassez de abrigos de emergência para as vítimas da violência. A principal casa de emergência em Roma para mulheres espancadas é um apartamento comum de três quartos nos arredores dos antes lendários estúdios cinematográficos Cinecittà. Atendendo à capital romana bem como à região de Lazio, na Itália central, ele pode acomodar apenas três mulheres por vez, durante uma estadia máxima de uma semana. Dada a escala da necessidade, existem “pouquíssimos lugares” para mulheres espancadas procurarem na Itália, afirmou Emanuela Donato, uma das funcionárias do Servizio Antiviolenza SOS Donna H24, serviço 24 horas para vítimas da violência doméstica e abrigo de emergência. Segundo ela, até agora neste ano mais de 220 mulheres acionaram a casa. — Multiplique isso pela Itália e você terá uma noção da emergência. E esse é apenas o número de mulheres que têm a coragem de reconhecer que são vítimas e vêm procurar nosso auxílio — ressaltou. Segundo recomendações de uma força-tarefa do Conselho da Europa, os países deveriam ter um abrigo para a mulher e seus filhos a cada 10 mil residentes. Por essa medida, a Itália deveria ter ao redor de 5,7 mil casas em âmbito nacional, mas são apenas 500. A Itália também fica para trás em termos de assistência jurídica, médica, psicológica e financeira para mulheres que deixam um relacionamento violento, afirmam trabalhadores do setor. — O recado percebido é fique em casa, pois se você for embora não existe nada ou quase nada para ajudá-la — afirmou Donato. Na verdade, na presente situação econômica sombria, “muitos abrigos e centros contra a violência de toda a Itália estão fechando as portas por causa da falta de financiamento”, disse Oria Gargano, presidente da Be Free, a associação que gerencia o abrigo SOS com a prefeitura romana. Para ela, o decreto do governo “não resolve a questão”. Na verdade, a prolongada recessão da Itália deve “agravar o problema” da agressão doméstica, afirmou Patrizia Romito, professora de psicologia social da Universidade de Trieste, tornando mais difícil para as mulheres encontrarem o dinheiro necessário para deixar uma situação violenta. Além disso, para homens potencialmente agressivos, a perda de um emprego pode remover as “âncoras sociais que podem restringir o comportamento violento”, avaliou Romito. Os defensores das vítimas também dizem que fatores culturais contribuem para as agressões contra as mulheres. Os chamados crimes de honra contra mulheres que teriam desgraçado a família eram legais até 1981, disse Luisa Pronzato, que mantém um blog sobre mulheres para o jornal milanês “Corriere della Sera”. O paternalismo “faz parte da nossa cultura”, e continua permeando a sociedade italiana, acrescentou ela. Segundo outros envolvidos, até mesmo policiais e funcionários do setor de saúde convocados a reagir à violência doméstica não são imunes a tais atitudes. — Tivemos um caso recente em que a mulher foi ameaçada pelo marido com uma faca e, depois de ligar para a polícia, o policial lhe falou: ‘Por que não lhe cozinha uma bela macarronada e fazem as pazes?’ — disse Nadia Somma, o presidente da Demetra, associação que administra um abrigo em Ravena, no noroeste da Itália. Segundo Somma, o novo decreto ignora a realidade de que vítimas e agressores costumam continuar a viver juntos mesmo depois de registro dos boletins de ocorrência por causa do notoriamente lento sistema jurídico italiano, e os defensores das vítimas dizem que mesmo os atacantes condenados raramente ficam muito tempo na cadeia. O governo defendeu o decreto, que ainda necessita ser aprovado pelas duas casas do Parlamento para virar lei, e Maria Cecilia Guerra, Vice-Ministra do Trabalho que coordenou a força-tarefa responsável pelo esboço do decreto, afirmou que além de oferecer mais proteção às vítimas, as medidas visavam “aumentar a conscientização sobre a violência doméstica”. Guerra reconheceu que embora as redes de assistência às mulheres espancadas necessitem ser melhoradas, a crise econômica da Itália vai exigir dos grupos oferecendo serviços às vítimas o desenvolvimento de melhor “sinergia entre as estruturas existentes”. Entretanto, Donato, do abrigo de Roma, disse que era difícil operar o centro com o pouco dinheiro recebido. A falta de recursos é “uma forma de violência a seu próprio modo contra as mulheres”. |
Fonte: Zero Hora
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