Cansadas de “damas em perigo” e personagens hipersexualizadas, mulheres pedem tratamento mais igualitário dentro e fora dos videogames Cansadas de damas em perigo e personagens hipersexualizadas, mulheres pedem tratamento mais igualitário dentro e fora dos videogames. Pare e pense por um instante: você conhece quantos jogos eletrônicos estrelados por mulheres, heroínas fortes e marcantes? A resposta está nas prateleiras das lojas, físicas ou virtuais: poucos. No fim de 2012, a firma de consultoria especializada em games EEDAR (Electronic Entertainment Design and Research) analisou 669 títulos com protagonista de gênero reconhecível e descobriu que apenas 300 deles traziam a opção de escolher ou criar uma personagem feminina. Mais: do total de jogos pesquisados, apenas 24 (menos de 4%) tinham mulheres como protagonistas exclusivas. Desde o início dos videogames, a grande maioria dos jogos coloca a mulher como personagem secundária, sendo ela apenas parte do cenário ou dependente de um homem. Nesse último caso, ela não passa de uma assistente do herói ou uma donzela a ser resgatada do mal. A franquia da Nintendo “Super Mario”, uma das mais populares da história, é o exemplo mais didático de uma das formas como o sexo feminino costuma ser retratado nesse universo. No jogo original, inspirado no marinheiro Popeye e no longa-metragem “King Kong” (1933), o astro é um encanador bigodudo que precisa resgatar sua namorada Pauline das garras de um gorila. Pauline surgia, em 1981, como a primeira donzela em perigo dos games. Desde então, tal fórmula narrativa seria reproduzida incansavelmente não só nas sequências de “Super Mario”, mas em inúmeros outros títulos. Além de frágeis, indefesas e incapazes de se cuidar sem a ajuda da figura patriarcal, há outro estereótipo propagado em larga escala pelo setor, da mulher como mero objeto sexual. Para chamar a atenção do público masculino, que ainda corresponde à maior parcela dos jogadores, a indústria aposta em personagens sexualizadas, que têm atributos muitas vezes exagerados e vestem roupas curtas, coladas e decotadas. Esse tipo de representação é visível em games de quase todos os gêneros, especialmente nos de luta, como na série “Dead or Alive”. Cansadas de serem retratadas por clichês considerados sexistas, jogadoras têm lutado por mais histórias protagonizadas por mulheres e um tratamento mais humanizado de tais representantes. “Ao entramos numa história, queremos nos sentir parte dela. E não consigo me enxergar nesse padrão de mulher que os homens querem ver”, afirma a recepcionista de hostel Carolina Stary, 20. Ser mulher e consumidora de jogos eletrônicos não é tão simples como deveria ser. Insultos e ameaças movidos por discriminação sexual são comuns na vida de garotas gamers. Para a designer de jogos Maíra Testa, uma sociedade “machista” preserva a noção de que videogame é coisa de homem. “Eles ainda acham que não sabemos jogar, que não temos habilidade para isso.” O blog “Fat, Ugly or Slutty” (gorda, feia ou vagabunda, em tradução livre) possui um registro extenso de ofensas sexistas reunidas por jogadoras pelo mundo. Os insultos vão de mensagens de texto pedindo-lhes para “retornarem à cozinha” a arquivos de áudio com conteúdo pornográfico e ameaças de morte e estupro. Para escapar do assédio, algumas jogadoras evitam falar ao microfone durante uma partida on-line ou usar nomes de usuário que identifiquem seu gênero. Denunciar os abusos para os administradores do jogo? “É muito difícil, porque normalmente também são caras que acham isso tudo normal”, diz a jogadora Carolina Stary. “Eles não veem isso como ofensa. Para eles, é engraçado.” A publicitária Danielle Cruz, 27, conta ter percebido uma vez que os homens costumavam abandonar os servidores do game de tiro “Left4Dead” em que ela entrava para jogar. “Comecei a usar o perfil do meu namorado e eles não saíam mais”, conta. Na internet, descobriu que garotos planejavam esse tipo de boicote na presença de alguém do sexo oposto. “Ridículo, não é? Devo jogar melhor que muitos deles ali”, brinca. Para elas, games não mostram retratos diversos da mulher Cultura sexista e predominância masculina na indústria contribuem para isso, diz consultora do setor Estúdios começam a criar personagens femininas diferentes, mas iniciativas ainda são poucas Stary faz parte de uma comunidade crescente –e ainda vítima de preconceitos– no mundo dos jogos eletrônicos: a de meninas gamers. Estudos realizados no ano passado mostram que as mulheres já respondem por quase metade da população de jogadores em mercados como EUA, Reino Unido e Brasil. Mesmo assim, os estúdios continuam destinando grande parte de seus títulos para os homens, colocando garotas em segundo plano e caracterizando-as a partir de um olhar machista. Na visão do mercado, essa é uma lógica que traz poucos riscos e, consequentemente, uma receita maior, como indicou o diretor-executivo da EEDAR (Electronic Entertainment Design and Research) Geoffrey Zatkin em entrevista ao site “The Penny Arcade Report”, em novembro. Ainda em sua pesquisa sobre gêneros, a EEDAR revelou que jogos eletrônicos vendem 75% mais quando possuem só protagonistas masculinos. Mas o marketing também conta. Games estrelados exclusivamente por mulheres recebem apenas metade da verba que os outros têm para divulgação na mídia. Segundo jogadoras e estudiosas, esse cenário é reflexo de um comportamento machista e da predominância funcionários homens na indústria dos videogames. “As pessoas dizem que os jogos não são realistas, mas, em geral, eles mostram o lugar da mulher na nossa sociedade”, diz Mattie Brice, 26, consultora e crítica de videogames em San Francisco. A paulistana Maíra Testa, 24, é designer de jogos e, nas empresas pelas quais passou, o sexo oposto compunha sempre a maioria. “Já trabalhei com muitas garotas no setor de design. Mas em programação, por exemplo, quase não há não mulheres”, relata. “[Essa área de games] é um meio muito masculino ainda.” MUDANÇAS Apesar da perspectiva negativa, existe um consenso de que a situação está começando a mudar, mesmo devagar. Jogos como “Mirror’s Edge” e o novo “Tomb Raider” colocam a mulher no papel principal e são mais realistas. O blogueiro de games Carlos Viana, 27, é a favor dessa evolução: “Existem, sim, jogos apelativos. Infelizmente, a maioria dos estúdios quer dinheiro, e mulheres em trajes vulgares são rentáveis.” “O videogame precisa ser uma mídia inclusiva”, diz Ivelise Fortim, professora de psicologia da PUC-SP e pesquisadora do tema. “Ele tem que espelhar a diversidade que existe na vida cotidiana.” |
Fonte: Folha de São Paulo
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