Em uma cruzada para combater os numerosos casos de estupro registrados nos últimos meses em campi universitários nos Estados Unidos, a Califórnia se tornou o primeiro estado americano a exigir dos estudantes de universidades financiadas pelo governo que se assegurem de ter a aceitação clara do parceiro ou da parceira antes de qualquer atividade sexual. A autorização não precisa ser por escrito nem registrada em cartório, mas deve estar clara, mesmo que apenas com um gesto. A nova orientação surge quatro meses após o Departamento de Educação americano divulgar uma lista com 55 universidades que estavam sendo investigadas por esse tipo de violência. No Brasil, os casos de agressão também não são incomuns, e as vítimas estão se articulando para cobrar melhores políticas de proteção às estudantes. É o caso do grupo Mulheres Contra o Assédio na Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Comitê de Autodefesa das Mulheres da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde alunas já têm até aulas de defesa pessoal.
Segundo seus defensores, a lei “Sim significa sim” (“Yes means yes”), assinada pelo governador Jerry Brown anteontem, mudará a percepção do que é o estupro. Ela estipula que é a autorização voluntária que define o consentimento, e não uma “falta de resistência” ao ato. A lei – que faz uma referência ao famoso slogan “Não significa não”, usado em protestos contra estupro – é a primeira nos EUA a fazer da clara comunicação do consentimento o conceito central das políticas de agressão sexual em escolas e campi. O projeto define “consentimento” como “um acordo positivo, consciente e voluntário de se envolver em uma atividade sexual”. Os legisladores explicam que o consenso pode ser não verbal, desde que o comportamento do parceiro(a) não deixe dúvidas sobre o desejo. Também estabelecem que o silêncio ou a falta de resistência não significam consentimento e que drogas ou bebidas alcoólicas não são “justificativas” para uma atividade sexual indesejada. Vítimas alcoolizadas ou drogadas, segundo a lógica, não estão aptas a dar um consentimento consciente. “O consentimento afirmativo deve ser contínuo ao longo da atividade sexual e pode ser revogado a qualquer momento”, diz o texto da lei, ressaltando, ainda, que a existência de um relacionamento entre as partes ou relações sexuais passadas nunca, por si só, devem ser consideradas como um indicador de concordância. O objetivo é melhorar a forma como os campi lidam com acusações de agressão sexual e questionar a ideia de que as vítimas precisam resistir à investida para que suas queixas sejam válidas. Críticos, no entanto, dizem que a nova lei expande “perigosamente” a definição de abuso sexual. A Coalizão Nacional Para os Homens qualificou a regra como “misandria” (ódio aos homens), dizendo que ela “dá licença para falsas acusações, custará ao estado centenas de milhões de dólares em ações judiciais e preparará o terreno para arruinar vidas inocentes”. “É trágico que essa cruzada contra estupros em campi presuma a veracidade dos acusadores (tidos como ‘sobreviventes’) e, por consequência, a culpa do acusado (praticamente todos os homens). Isso é bom para os denunciantes — mas e os direitos ao processo legal do acusado?”, escreveu Gordon Finley, um assessor do grupo e professor emérito de psicologia da Universidade Internacional da Flórida. Há pouco mais de uma semana, o presidente Barack Obama já havia lançado uma campanha de combate a abusos sexuais, com foco nos campi. O programa “It’s on us” tem o intuito de compartilhar com todos a responsabilidade de prevenção aos abusos sexuais, em especial com as universidades, que devem se esforçar na proteção dos seus alunos. Segundo Obama, “a estimativa é que uma em cada cinco mulheres sofreram abusos sexuais durante os anos de faculdade”. NO RIO, ATÉ AULAS DE AUTODEFESA No Brasil, alguns grupos de estudantes não estão dispostos a esperar que governo ou universidades tomem medidas necessárias para prevenir estupros nos campi. Na UFRJ, o núcleo Mulheres Contra o Assédio, que já tem 15 integrantes, está formulando, com o braço brasileiro da ONG ActionAid, uma carta que exige segurança pública, entre outras políticas para combater ataques a alunas. Vítima de assédio sexual no mês passado no campus da Praia Vermelha, em Botafogo, no Rio, Gabriela Sarmet é uma das organizadoras. – Exigimos um treinamento com os seguranças de respeito e proteção à mulher, porque, quando procurei um policial para denunciar o abuso que sofri, tive que ouvir ele dizer: “Mas também, você anda assim toda gostosinha” – relata Gabriela, que estuda Relações Internacionais e integra o coletivo feminino FemmeRI-UFRJ. Já na UFRRJ foi criado o Comitê de Autodefesa das Mulheres, inspirado em iniciativa de alunas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Em reuniões semanais, as jovens debatem questões de gênero e têm até aulas de defesa pessoal. – Já tivemos quatro reuniões. A ideia é reagir à violência na universidade, cada vez mais comum – afirma uma aluna de Psicologia de 20 anos que sofreu tentativa de estupro ano passado – Apoio a lei californiana. O ideal é que não houvesse necessidade dessa regra, mas ela colabora para que os casos não sejam abafados. Professor de Direito da Universidade do Estado do Rio (Uerj), Jorge Câmara acredita que a pretensão da nova lei seja atualizar o conceito de estupro e evitar desculpas como “Eu achei que ela estava a fim”. – Muitas vezes, não há uma agressão física ou uma ameaça, mas a vítima é colocada numa situação de constrangimento em que se sinta coagida a executar o ato sexual com alguém. Na maior parte desses casos, ela não tem sequer a força para dizer “não” – observa o professor da disciplina de Direito Penal. Para o docente, a lei não deve alterar o julgamento dos casos. – Claro que pode haver homens injustamente acusados de estupro, e, nesses casos, como em todos os outros, caberá ao juiz avaliar as provas – ressalta Câmara. – Essa mudança na percepção do que é o estupro ajuda a mudar todo um comportamento social que costuma culpabilizar a vítima pelo crime de abuso sexual. Presidente da Comissão de Direito Penal da OAB/RJ, Carlos Eduardo de Campos Machado diz que a realidade brasileira é distante da americana, já que, por lá, os estudantes costumam morar nos dormitórios das universidades. Ele acredita que a lei “Sim significa sim” representa um alerta de que o governo americano não fará vista grossa com casos de violência sexual nas universidades. – A lei pede que os agentes de ensino de cursos superiores tomem as medidas necessárias para prevenir que nos campi aconteçam casos de abuso. E mais: ela quer que as instituições ensinem aos seus estudantes que é preciso se certificar de que o consentimento para o ato foi dado – pontua Campos Machado. Nana Queiroz, ativista e fundadora do movimento #EuNãoMereçoSerEstuprada, diz admirar o esforço que a lei faz, mas faz ressalvas em relação à regra: – Essa lei burocratiza o sexo. As pessoas não deveriam precisar ouvir “sim” para saber que não estão estuprando, se fossem educadas para identificar o que é violência. E, por se basear sobretudo em casos contra mulheres, coloca-as em uma situação passiva em relação ao sexo, como se a iniciativa não pudesse partir delas. Marina Cohen/ Dandara Tinoco |
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Fonte: O Globo
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